
No cravo
O empréstimo consignado, criado em 2003 como uma modalidade de crédito com taxas de juros inferiores às praticadas no mercado, destinava-se, inicialmente, aos servidores públicos e aos aposentados e pensionistas do INSS. Ter acesso a essa modalidade de crédito é simples, a pessoa só precisa solicitar ao banco onde possui conta corrente, assinar um contrato e autorizar que as prestações sejam automaticamente debitadas em seus contracheques pelo prazo do contrato. Os bancos ficaram tremendamente interessados em emprestar dinheiro para esse público, pois o risco de inadimplência era praticamente nulo, uma vez que as prestações eram descontadas diretamente da folha de pagamento ou dos benefícios dos tomadores do crédito.
Ao longo do tempo, e talvez por pressões dos bancos, a regulamentação desses empréstimos sofreu várias alterações. Em sua primeira formulação, em 2003, previa-se um desconto máximo que poderia incidir sobre os salários/benefícios dos mutuários, a ‘margem consignável’, fixada em 30%. Assim, o valor das prestações descontado em folha não poderia ser maior que 30% do salário líquido (descontado o INSS e outros compromissos financeiros já contraídos). Mais recentemente, em 2015, a margem consignável foi elevada para 35%. Desse percentual, 30% era liberado para empréstimo e 5% para o cartão de crédito consignado. É importante observar que as despesas com o cartão também são descontadas da folha de pagamento. Portanto, são apenas denominações diferentes de crédito, mas a ideia central é a mesma. Em 2020, com a pandemia do Covid, a margem subiu para 40% e, em 2022, fixou-se em 45%. Com isso, o tomador de empréstimo pode comprometer 45% de sua renda líquida com o pagamento de prestações sobre o empréstimo adquirido. Convenhamos, é uma carga muito grande.
Ainda em 2003, a modalidade de empréstimo consignado expandiu-se para os trabalhadores celetistas que, a partir de convênios das empresas em que trabalhavam com a rede bancária, poderiam contrair o crédito e ter os descontos das prestações nos contracheques. Contudo, só os trabalhadores das grandes empresas se beneficiavam, pois sós essas faziam convênios com os bancos, questão que foi resolvida no início de 2025, quando o governo lançou o ‘novo empréstimo consignado privado’, em que o trabalhador pode contratar o consignado diretamente com o banco, sem a mediação da empresa em que trabalha. Dessa forma, além dos servidores, aposentados e pensionistas, os demais trabalhadores passaram a ter acesso ao empréstimo consignado. Continuam de fora os trabalhadores sem carteira assinada, a força de trabalho informal.
Com os sucessivos aumentos da margem e a inclusão de mais trabalhadores nessa modalidade, o volume total de empréstimos concedidos pelos bancos na conta de consignados aumentou expressivamente. Na época de seu lançamento, em 2003, o valor total dos empréstimos somou R$ 7 bilhões, dez anos depois, em 2013, saltou para R$ 220 bilhões e, em 2024, para R$ 625 bilhões. A expectativa é de mais crescimento em 2025.
Evidente que isso tornou-se um grande negócio para os bancos, pelo menos por dois motivos: o grande volume de recursos que circula como empréstimo e o baixíssimo risco de inadimplência. Não há dúvida de que os empréstimos consignados vieram como um benefício para a parcela da população de baixa renda, com dificuldades para contrair empréstimos junto à rede bancária, porém, com o aumento da margem consignável para 45%, houve aumento no comprometimento da renda familiar com risco de acúmulo excessivo de dívidas, levando-as à insolvência. Os bancos, como sempre, estarão protegidos, já que as prestações são descontadas diretamente sobre a folha de pagamento e transferidas aos seus cofres. Já o trabalhador, se não planejar sua vida financeira, não terá para onde correr.
Acrescente-se a isso, algumas práticas insidiosas que os bancos normalmente utilizam. Costumam oferecer novos empréstimos imediatamente quando o anterior é liquidado, criando um público cativo de eternos devedores. Perpetua-se, dessa forma, uma situação totalmente incomoda para aqueles que, por terem baixa renda, necessitam do empréstimo consignado e se tornam refém dos bancos. Essa não é a inclusão financeira e social que se deseja e essa política deve ser repensada.
Na ferradura
As ‘bets’ despencaram como uma avalanche sobre o imaginário da população, prometendo ganhos fáceis e seguros. As pessoas, sugestionadas pela propaganda, passaram a não jogar por simples diversão, mas acreditam seriamente que as apostas vão lhes proporcionar ganhos que mudarão seu status de vida, tornando-as ricas. Por falta de informação, não percebem que os jogos de azar, desde que surgiram, enriquecem o dono da banca, nunca os jogadores. Na verdade, as apostas on-line estão se tornando uma questão de saúde pública, pois põem em risco a saúde física, mental e financeira das pessoas. A tecnologia ainda facilita sua disseminação e penetração em todos os estratos sociais, uma vez que não é preciso se deslocar, as apostas podem ser facilmente realizadas on-line, com o uso de telefone celular, 24 horas por dia.
Para incentivar ainda mais as apostas, as bets estão presentes em todas as mídias, fazendo propagandas na TV, rádio e redes sociais, utilizando artistas, modelos e atletas. Seus anúncios estão nos uniformes de todas as equipes de futebol que atuam nas divisões principais e suas placas publicitárias circundam todo o campo de jogo das maiores arenas, saturando a cabeça do público, funcionando quase que como uma coação para que se aposte.
Segundo pesquisas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), cerca de 28 milhões de brasileiros (17,4% da população) jogam nas bets ou em plataformas on-line. Desse total, 11 milhões (6,8% da população), com idade superior a 14 anos, jogam de forma contumaz, criando problemas para eles próprios, para a família, no trabalho e dificultando a convivência social. O mais preocupante, segundo os pesquisadores, é que cerca de “um em cada oito desses jogadores, o que equivale a 1,4 milhão de pessoas (0,8% da população) apresenta um padrão de apostas mais comprometedor, compatível com o diagnóstico do ‘transtorno do jogo’, uma enfermidade caracterizada pelo desejo incontrolável de jogar, mesmo diante de prejuízos”. Podemos imaginar, então, que frente ao bombardeio publicitário entorno das bets, esse quadro deve se agravar em futuro não muito distante.
A pesquisa também revela aspectos mais graves da situação. As formas mais arriscadas e problemáticas de se jogar são mais encontradas entre as pessoas com renda mensal de até um salário mínimo (R$ 1.518,00), em comparação, por exemplo, com a parcela da população que recebe dois ou mais salários mínimos. A pesquisa constata, então, que “indivíduos com renda inferior a um salário mínimo correm mais riscos de apresentar um padrão de jogo de risco ou problemático, independente do sexo e da idade”. Dos 28 milhões de apostadores, 28,6% encontram-se na faixa etária de 50 anos ou mais de idade.
Em dezembro de 2023, o Presidente Lula sancionou a Lei 14.790, que regulamenta o funcionamento das bets e estabelece algumas regras para seu funcionamento, assim como o direcionamento dos tributos recolhidos com essa atividade. A regulamentação reduziu extraordinariamente a quantidade de empresas que exploravam esse tipo de jogo, mas não conseguiu reduzir a quantidade de apostadores e o valor das apostas. A legalização e regulamentação desse tipo de jogo, segundo pesquisas de universidade norte-americana[1], dá alguma segurança aos potenciais apostadores, fazendo com que as apostas aumentem. O estudo revela que “as apostas subiram de cerca de US$ 1,1 bilhão por mês em 2019, para US$ 14 bilhões mensais em janeiro de 2024. Três anos após a regulamentação do jogo, cada família estava apostando, em média, valores oito vezes maiores que os da primeira aposta. A proporção da renda gasta com apostas pelas famílias mais pobres era 32% superior à das famílias mais ricas”.
A invasão das plataformas de jogos on-line no Brasil partir de 2018, oferecendo desde apostas esportivas (sports betting) a jogos de caça-níquel, tipo ‘jogo do tigrinho’ (Fortune Tiger) proporcionam ganhos milionários às empresas promotoras dos jogos e agonia aos apostadores. As notícias que se tem da penetração dessas modalidades de jogos na sociedade brasileira, de norte a sul, são impressionantes e preocupantes.
O Banco Itaú divulgou estudo (Itaú – Macrovisão/pg.2 – 13.08.2024) que exprime bem essa situação. O relato informa que o movimento das apostas on-line no Brasil, de julho de 2023 a junho de 2024 (período de doze meses), somou R$ 68,2 bilhões, nada menos que 0,6% do PIB nacional. Desse total, R$ 24,2 bilhões (35,5%) ficaram com os promotores das apostas e, com os jogadores, na realidade as vítimas de todo o negócio, restaram R$ 200 milhões (0,3%) distribuídos como prêmios por terem ganho alguma aposta. Trata-se de um verdadeiro assalto contra a economia popular.
Nesse mesmo sentido, em setembro de 2024, o Banco Central do Brasil publicou uma nota técnica (NT 513/2024-BCB/SECRE/23.09.24) que nos deixa ainda mais preocupados. Na nota, o BC estima que as apostas em jogos on-line chegaram a cerca de R$ 20 bilhões por mês em 2024. A nota prossegue, informando que em agosto daquele ano, 5 milhões de beneficiários do bolsa-família teriam jogado R$ 3 bilhões. Não deixa de ser uma situação constrangedora quando pessoas que pertencem à parcela pobre da população e recebem auxílio público para sobreviverem, deixam se iludir e desviam parte dessa ajuda para apostas que só as deixarão mais pobres.
No cravo e a na ferradura
As duas situações, dos empréstimos consignados e das apostas on-line, são de naturezas diferentes, mas atingem, mesmo que de forma enviesada, a população mais carente, menos educada e desinformada da sociedade.
Evidente que ambas as atividades não estão em pé de igualdade, pois o crédito consignado tem uma finalidade meritória, positiva, enquanto as apostas on-line, com a falsa promessa de melhorar a vida financeira das pessoas, exploram inescrupulosamente aqueles que, por vício ou induzidos pela propaganda, dispendem o pouco recurso que possuem na jogatina, em detrimento de gastos necessários a sua própria sobrevivência e de sua família.
Talvez o ponto de intersecção entre as duas seja o exagero, às vezes a má fé, com que assediam o público. De um lado o sistema bancário, que induzindo o governo a sancionar uma margem consignável exagerada, que no limite compromete quase a metade do salário do trabalhador para pagamento das prestações da dívida, força sua rolagem (empréstimo para pagar empréstimo), fazendo com que o mutuário não tenha condições de se livrar do compromisso, tornando-se um eterno devedor e pagando juros aos bancos.
De outro, as apostas on-line e sua capacidade econômica, publicitária e tecnológica, que põem na mente e nas mãos das pessoas a falsa possibilidade de ganhos financeiros imediatos. Uma grande empulhação que atinge, como vimos, a parcela mais pobre e necessitada da sociedade, drenando os parcos recursos que possuem em detrimentos de seu conforto físico e mental.
Airton dos Santos – Economista
Subseção do Dieese no Sindnapi
Maio/2025
[1] Universidade Northwestern (USA). Estudo liderado pelo economista Scott R. Baker